Dra. Juliana Busch, Médica, Diretora de Previdência e Assistência da Capesesp e Diretora na Ispor Brazil Chapter, discute neste texto sobre o processo de Avaliação de Tecnologia em Saúde na incorporação de procedimentos e eventos como cobertura mínima obrigatória no âmbito da Saúde Suplementar (Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde)
O sistema de saúde no Brasil é formado por um setor público, que cobre cerca de 75% da população, e, um setor privado, que oferece assistência médico-hospitalar aos 25% restantes dos brasileiros. O setor público é composto pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e seu financiamento advém de impostos gerais e contribuições sociais arrecadados pelos três níveis de governo (federal, estadual e municipal). Já o sistema privado, é basicamente representado pela Saúde Suplementar (planos de saúde, convênios). Cabe ressaltar que uma pequena parcela da população é atendida também por autarquias, entidades com personalidade jurídica de direito público, patrimônio e autonomia administrativa e financeira com o objetivo de assegurar aos servidores do Estado regimes de previdência e assistência à saúde.1
O sistema público se caracteriza por ser universal e 100% gratuito – um direito de todo cidadão brasileiro. O SUS é responsável pelo planejamento e execução de ações e serviços visando a promoção, proteção e recuperação da saúde. Ainda dentro do SUS existem dois órgãos muito importantes: a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), responsável por assegurar que todos os procedimentos (medicamentos e exames) são seguros e eficazes para os pacientes, e a Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias), órgão federal responsável por avaliar e decidir quais dos novos medicamentos, produtos e procedimentos médicos deverão ser incorporados e disponibilizados universalmente para toda população brasileira.2
No mercado privado, o principal órgão é a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), responsável pela regulação e elaboração de normas, pelo controle e a fiscalização das operadoras de planos e seguros de saúde. Em outubro de 2021, segundo dados da ANS, o Brasil possui em torno de 48,4 milhões de usuários utilizando o sistema de saúde suplementar, e, pouco mais de 700 operadoras em todo o país. 3
Elaborado a partir de dados disponíveis em: Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dados Gerais. Disponível em: https://www.gov.br/ans/pt-br/acesso-a-informacao/perfil-do-setor/dados-gerais
O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre o processo de Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS) na incorporação de procedimentos e eventos como cobertura mínima obrigatória no âmbito da Saúde Suplementar (Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde).
Antes de abordar como funciona o processo de incorporação de novas tecnologias na saúde suplementar, será necessário entender o cenário atual do sistema de saúde no Brasil, momento esse que vem se prolongando há algumas décadas: custo da saúde em constante evolução, limitação de recursos financeiros das empresas e usuários, estímulo ao uso das tecnologias disponíveis por conta do modelo predominante de remuneração que privilegia o consumo (fee for service) e a incorporação acrítica de tecnologias. Por outro lado, observamos a insatisfação dos beneficiários de ambos os sistemas, público e privado, a qualidade insatisfatória dos serviços prestados, aliados ao momento de transição demográfica e epidemiológica da população e à tripla carga de doenças. Isso tudo resulta no grande desafio que os gestores e profissionais da saúde enfrentam no cotidiano em garantir o acesso à saúde sem comprometer a sustentabilidade de todo o sistema.
Sob a perspectiva dos gestores da saúde suplementar, não é novidade que a atualização no processo de incorporação de novas tecnologias do Rol é imprescindível e necessária, inclusive, cabe ressaltar que por vezes, os próprios são também beneficiários e usuários do sistema, e querem ter acesso à melhor assistência disponível. No entanto, a entrada de novos medicamentos e procedimentos, assim como a cobertura para novas indicações na lista, costumam gerar um impacto financeiro adicional nas operadoras de saúde, necessitando de ajustes nos cálculos atuariais subsequentes. 4
Nessa cadeia devemos ter sempre em mente que em uma ponta está o principal ator do sistema, o beneficiário, que ao ter acesso às novas tecnologias, terá que arcar com parte do impacto financeiro de novas edições do Rol acrescido às suas mensalidades. Isso contribui para dificuldade em manter o vínculo ao plano, gerando evasão e sobrecarregando ainda mais o sistema público de saúde. Um ponto interessante e que falaremos mais a frente é justamente a diferença das coberturas dos tratamentos nos sistemas público e privado, assim como o rito de incorporação de tecnologias.
O que é o Rol de procedimentos e eventos em saúde?
Antes da Lei nº 9.656/1998, os contratos de assistência à saúde não previam cobertura mínima regulamentada, as mesmas eram estabelecidas em contratos firmados entre a operadora e o consumidor, e, assim, algumas operadoras acabavam limitando o acesso às consultas e tratamentos, prevendo exclusões de coberturas e negativas de procedimentos médico-hospitalares em seus contratos.5 Com a regulamentação do setor em 1998 e a criação da ANS em janeiro de 2000, pela Lei nº 9.961/2000, houve a ampliação da cobertura assistencial dos contratos de planos de saúde, além de outros benefícios aos consumidores, como a proibição da limitação do número de consultas, de cobertura para exames e de prazo para internações, mesmo em leitos de alta tecnologia, prática comum anteriormente6.
O Rol de procedimentos e eventos em saúde foi criado para garantir e tornar pública a cobertura assistencial obrigatória válida para os planos de saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999, e os adaptados à Lei, contemplando os procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças e eventos em saúde, em cumprimento ao disposto na Lei nº 9.656/98.6 Tal lista, é atualizada periodicamente, tendo em vista que novas tecnologias em saúde chegam a todo instante no mercado e são solicitadas as respectivas incorporações à prática assistencial. As inclusões dessas novas tecnologias são sempre precedidas de análises criteriosas, alinhadas com a Política Nacional de Saúde, e contemplam, além das evidências científicas, a necessidade social e a disponibilidade de recursos para custeá-las. A decisão pela inclusão ou não, leva também em consideração a prevalência de doenças na população, dentre outros critérios. 7
Desde a publicação do primeiro Rol, definido pela Resolução do Conselho de Saúde Suplementar – CONSU 10/1998, o processo sofreu algumas mudanças. A primeira atualização da lista inicial ocorreu em 2000 com a Resolução da Diretoria Colegiada RDC nº 21/2000, a qual estabelecia também critérios para procedimentos odontológicos. Na saúde suplementar a incorporação das novas tecnologias assim como a definição das regras para sua utilização (Diretrizes de Utilização – DUT) são regulamentadas pelas Resoluções Normativas (RNs) definidas pela ANS por meio dos ciclos de atualização previstos para ocorrer a cada dois anos.7
Até então, cada ciclo de atualização do Rol se iniciava com um ato de deliberação da Diretoria Colegiada da ANS (DICOL), e apresentação do cronograma com o prazo para apresentação das submissões via preenchimento do formulário eletrônico FormRol, disponível tanto para pessoas físicas quanto jurídicas e que incluía a participação do Comitê Permanente de Regulação da Atenção à Saúde - COSAÚDE, órgão de caráter consultivo, pelo qual se estabelecia o diálogo permanente com os agentes da saúde suplementar e a sociedade. O COSAÚDE, foi instituído pela Instrução Normativa – IN nº 44/2014, para discutir sobre temas relacionados à atenção à saúde e a regulação assistencial na saúde suplementar. As demandas de alteração do Rol antes da RN nº 439 sobre a qual falaremos a seguir, eram encaminhadas pelos membros desse comitê para a ANS e a sociedade, de maneira geral, podia participar apenas durante a consulta pública que precede a publicação da nova lista de coberturas obrigatórias. 7
Ao longo dos anos, a ANS veio estabelecendo novas regras e procedimentos para as atualizações periódicas do Rol, incluindo a discussão das propostas em reuniões e grupos técnicos com membros da Câmara de Saúde Suplementar – CAMSS, composta por entidades representantes dos protagonistas do setor (associações, sindicatos, operadoras de saúde, associações de pacientes, entre outros); e por órgãos de governo (ministérios, federações, outros) cujos assentos são definidos por lei. 7
A RN nº 439/2018
Com a publicação da Resolução Normativa – RN nº 439/20188, o rito processual de atualização do Rol foi alterado, trazendo inovações relativas à padronização, à previsibilidade, à participação social e transparência dos atos administrativos. Com isso, foram estabelecidos ciclos de atualização com duração de dois anos, e ampliada a participação social, estabelecendo que qualquer cidadão poderia enviar uma proposta de atualização do Rol, resultando em maior transparência em cada uma das etapas. Após a publicação dessa RN toda a sociedade adquiriu o direito de participar pela primeira vez nos dois momentos do rito, tanto na fase inicial, de submissão de proposta de atualização do Rol, como por ocasião da consulta pública habitual. (conteúdo elaborado pelo autor).
Não há dúvidas que a referida norma foi um grande avanço na regulamentação do processo, porém o tempo prolongado para finalização dos ciclos, e o início da cobertura obrigatória na prática após sua atualização, reforçou a necessidade de ajustes. Desse modo, um novo processo de revisão do Rol foi então iniciado no período de 2020 e 2021, mesmo durante o estado de pandemia, e culminou com a publicação da norma atualmente em vigor, a RN nº 470/2021. 7
O novo Rol 2021
A lista de coberturas obrigatórias com vigência desde 1º de abril de 2021, foi instituída por meio da RN nº 465/2021 9. Cabe ressaltar, que, além de apresentar elevada qualidade das suas discussões técnicas, contando com ampla participação da sociedade; esta RN foi marcada pela transparência durante o processo de análise e revisão dos dossiês apresentados, permitindo maior assertividade na tomada de decisão por parte da Diretoria Colegiada da ANS e ganhos importantes para a sociedade. No período em que a consulta pública esteve aberta (de 08/10/2020 a 21/11/2020), a ANS recebeu 30.658 contribuições, um aumento de 500% em relação à última consulta pública para revisão da lista de coberturas, realizada em 2017, que teve 5.259 contribuições. Do total de sugestões recebidas, 50% (15.242) foram relativas a procedimentos; 47% (14.481) a medicamentos; e os 3% restantes relacionados a alterações em temos descritivos no texto da Resolução Normativa e sobre as atualizações extraordinárias realizadas em 2020 por conta da pandemia de Covid-19. A maior parte das contribuições foi encaminhada por profissionais de saúde, seguido de pacientes e familiares, amigos ou cuidadores de pacientes.10
Nessa última edição, foram acrescentadas 69 coberturas ao Rol, sendo 50 relativas a medicamentos (19 antineoplásicos orais; 17 imunobiológicos – doenças inflamatórias, crônicas e autoimunes, como psoríase, asma e esclerose múltipla – e 1 medicamento para tratamento de doença que leva a deformidades ósseas), além de 19 coberturas referentes a procedimentos como exames, terapias e cirurgias.10 Maiores informações sobre as novas tecnologias incorporadas, indicações e DUTs (diretrizes de utilização) estão disponíveis no site da ANS e em plataformas virtuais como https://www.janssenpro.com.br/health-administrator/rol-ans-list.
O novo rito processual do Rol
Posteriormente, o órgão regulador publicou a Resolução Normativa nº 470/202111, alterando as etapas e fluxos para a revisão periódica do Rol, vigente a partir de 01/10/2021. Dentre as alterações normativas, merecem destaque a recepção e análise de propostas de maneira contínua através do formulário eletrônico FormRol, disponível no portal da Agência; a redução de requisitos para alguns tipos de propostas de atualização; a redução de etapas administrativas; o estabelecimento de prazos máximos para o término da análise de elegibilidade e tomada de decisão final sobre as propostas; e a execução de fluxos decisórios semestrais, com atualização da cobertura assistencial obrigatória nos meses de janeiro e julho de cada ano. As propostas poderão contemplar os seguintes tipos de solicitação: incorporação de nova tecnologia em saúde ou nova indicação de uso no Rol; desincorporação de tecnologia em saúde já listada no Rol; inclusão, exclusão ou alteração de Diretriz de Utilização – DUT; e alteração de nome de procedimento ou evento em saúde já listado no Rol. Porém, nesses primeiros 12 meses de vigência da normativa, serão recebidas apenas as propostas de incorporação de nova tecnologia em saúde ou nova indicação de uso no Rol e de alteração de nome de procedimento ou evento em saúde já listado no Rol. O proponente será notificado eletronicamente sobre o resultado da análise de elegibilidade de sua proposta em até 30 dias após o envio do formulário. No entanto, no período de transição da norma, os primeiros 180 dias de vigência, esse limite será estendido para até 60 dias após o envio. 11
Dessa forma, é esperado que o tempo médio de resposta a cada submissão varie entre 9 e 18 meses, já incluído nesse período a análise técnica, respectivas discussões nas reuniões, a consulta pública, a inclusão nos anexos da norma, a apreciação e a então aprovação na Diretoria Colegiada.
Uma mudança importante e que está gerando bastante discussão é aquela que determina que, todas as análises de submissões aprovadas na Conitec, automaticamente seriam incorporadas no mercado privado após avaliação de impacto orçamentário. O objetivo, segundo o órgão regulador, seria de simplificar o processo. Esse delicado ponto trouxe novamente de maneira mais calorosa a antiga discussão sobre o Rol ser taxativo ou exemplificativo.
Rol taxativo ou exemplificativo?
Desde setembro desse ano a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou o julgamento de dois recursos para definir se a lista de procedimentos de cobertura obrigatória para os planos de saúde é exemplificativa ou taxativa – ou seja, se as operadoras dos planos podem ou não ser obrigadas a cobrir procedimentos não incluídos na relação da agência reguladora.12
Os que defendem a taxatividade do Rol, sustentam a tese que que a elaboração do Rol tem o objetivo de proteger os beneficiários dos planos, assegurando a eficácia das novas tecnologias adotadas na área da saúde, não expondo pacientes a tratamentos sem comprovações cientificas, a pertinência dos procedimentos médicos e a avaliação dos impactos financeiros para o setor, preservando o equilíbrio econômico do mercado de planos de saúde. Por esses motivos, dentre outros (políticas de saúde e orçamentarias), que alguns países como Inglaterra, Itália, EUA e Japão, adotam uma lista oficial de coberturas obrigatórias pelos planos. 12, 13
Se o Rol for considerado meramente exemplificativo, não seria possível definir o preço da cobertura diante de uma lista de procedimentos indefinida ou flexível, sendo o prejuízo ao consumidor inevitável, pois o impacto seria percebido no repasse dos custos ao valor da mensalidade que grande parte da população já não consegue arcar, ou ainda inviabilizando a atividade econômica das operadoras, que levaria a uma sobrecarga ainda maior do sistema público de saúde.
Finalmente, cabe ressaltar que a ANS, conforme publicado em seu portal, reitera que as atualizações continuam observando as mesmas diretrizes das anteriores. Que são a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, de modo a contribuir para o desenvolvimento das ações de saúde no país; as ações de promoção à saúde e de prevenção de doenças; o alinhamento com a políticas nacionais de saúde; a utilização dos princípios da Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS); a observância aos princípios da Saúde Baseada em Evidências (SBE); a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor e a transparência dos atos administrativos.14
Referências:
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