Avanços recentes na chamada radioterapia ablativa (ou radiocirurgia) estereotáxica para tumores localizados no cérebro, tanto primários quanto metástases, possibilitam posicionar o paciente tridimensionalmente com precisão mais alta do que a de métodos convencionais. Isso permite a administração de doses únicas e altas de radiação mesmo em quadros de múltiplas lesões e tumores pequenos, sem danificar expressivamente o tecido sadio circundante.
A radiocirurgia foi tópico de um artigo de revisão publicado por pesquisadores brasileiros no periódico Frontiers in Oncology. Nós entrevistamos o primeiro autor do artigo e radio-oncologista do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo, Dr. Samir Abdallah Hanna. Além da visão histórica da radioterapia ablativa, o Dr. Hanna trouxe reflexões acerca da eficácia da radiocirurgia, especialmente da técnica de Arcoterapia Volumétrica Modulada (VMAT) e da promoção de qualidade de vida proporcionada por este método.
Oncologia Brasil: Como surgiu a técnica de radiocirurgia craniana, e quais as suas características mais importantes para o tratamento de pacientes oncológicos?
Dr. Hanna: A radioterapia ablativa craniana, também chamada de radiocirurgia craniana, é uma modalidade de tratamento que surgiu há mais de setenta anos. As primeiras descrições desse tipo de tratamento eram para pacientes que tinham outros diagnósticos que não câncer. Eles recebiam feixes de radiação ultrafocalizados e direcionados para uma região dentro da cabeça, sem a necessidade de anestesia ou de cirurgias.
A região-alvo era localizada através de um sistema de estereotaxia, um termo que diz respeito à habilidade de se localizar dentro de um ponto no espaço. Porém, esses pacientes tinham um acessório literalmente preso à cabeça, chamado halo estereotáxico, também chamado de frame ou molde.
No final dos anos 80 começou-se a utilizar a radioterapia ablativa craniana também no contexto do câncer. Foi quando surgiram as primeiras referências sobre esse tipo de tratamento para pacientes oncológicos, com metástases e tumores primários cerebrais. A técnica usa doses altíssimas de radiação, com feixes de radiação ultrafocalizados e com precisão submilimétrica. Constataram que quando o paciente recebia esses feixes de radiação, a região tratada necrosava, derretia. Então o tratamento foi erroneamente batizado inicialmente como “radiocirurgia”.
Oncologia Brasil: Qual o ganho em termos de conforto do paciente promovido por técnicas de radiocirurgia sem o frame? E como avanços adicionais na técnica promoveram outros ganhos de qualidade de vida e eficácia terapêutica?
Dr. Hanna: Sobre conforto, o próprio termo radiocirurgia, na minha opinião, assusta um pouco o paciente, além de ter um erro de conceito. Porque não é um tratamento em que alguém vai ser operado, mas o termo induz a essa interpretação: é radiação, radioterapia. É um tratamento não tão invasivo quanto uma cirurgia. O mais invasivo era a colocação desse frame, que era literalmente parafusado na cabeça. Do meio dos anos 90 para cá, mais ou menos, começaram a surgir as primeiras possibilidades de tratar os pacientes sem esses moldes, com uso de um acessório de plástico, uma máscara termoplástica.
A adoção das máscaras já gerou uma grande melhoria no processo, e aos poucos foi-se deixando de usar o tratamento com frame. Aqui no Hospital Sírio Libanês, o último paciente que nós tratamos com frame foi em 2006. Salvo em raríssimas exceções, não o utilizamos mais o frame na nossa instituição, por conta desse sistema de máscaras termoplásticas. As máscaras também são moldes, mas externos e sem a necessidade de fazer nada invasivo no paciente para sua construção.
A incorporação tecnológica na radioterapia representou um grande avanço nos tratamentos. Nós passamos a incluir imagens no tratamento, adotando uma estratégia chamada IGRT – Image Guided Radiation Therapy. Isso permite a checagem do tratamento com imagens, onde antigamente tínhamos apenas uma checagem pelo sistema de coordenadas estereotáxicas. Essas coordenadas eram fixas, o que significa que, se o paciente se mexesse pela respiração ou qualquer outro motivo, o sistema não era capaz de perceber e reagir, de forma a manter a irradiação restrita às áreas-alvo.
No começo dos anos 2000, começou-se a usar cada vez mais essa técnica de radiocirurgia, ou radioterapia ablativa, no cenário de pacientes com câncer metastático. Hoje em dia, a maior indicação e a maior frequência de pacientes é a de casos com metástases cerebrais.
Os primeiros estudos descreviam a técnica utilizada para o tratamento de pacientes com apenas uma lesão. De lá para cá essa indicação foi subindo, e hoje se indica a técnica para pacientes com quatro, cinco, dez lesões… No nosso artigo, por exemplo, trazemos dados de pacientes aqui do Sírio Libanês que tinham dezenove metástases.
Oncologia Brasil: A radioterapia ablativa é capaz de tratar diversas lesões simultaneamente? Qual o tempo do tratamento?
Dr. Hanna: Para fazer o tratamento de cada uma dessas lesões, normalmente o equipamento tem que entregar essa radiação no paciente por um intervalo de vinte a trinta minutos, mais ou menos. Quando começamos a tratar pacientes com muitas lesões, esses intervalos foram ficando muito prolongados. E aí surgiu a possibilidade de fazer o tratamento de lesões concomitantes, com uso da técnica VMAT – Volumetric Modulated Arc Therapy ou Arcoterapia Volumétrica Modulada.
A VMAT usa feixes modulados de radiação, permitindo a entrega de tratamento concomitante das lesões, tudo monitorizado pelas técnicas de IGRT. Então, se um paciente tem uma lesão, ficará entre vinte e trinta minutos no aparelho. Se são dezenove lesões, os mesmos vinte a trinta minutos, pois é uma técnica que permite o tratamento dos pacientes com muita rapidez. Na nossa revisão comparamos a VMAT a outras máquinas modernas de radiocirurgia, CyberKnife e o Gamma Knife, porém tratam as lesões uma de cada vez. Só a tecnologia VMAT é capaz de tratar as lesões de maneira concomitante, sendo a que demanda menor tempo dentre todas as disponíveis hoje.
Oncologia Brasil: Como foi a incorporação do VMAT na sua vida profissional, e na prática clínica do Hospital Sírio-Libanês?
Dr. Hanna: Nossa instituição já utilizava a técnica VMAT em outros tratamentos radioterápicos, desde 2011. Em 2012 eu fui vivenciei alguns pacientes que foram tratados com radioterapia ablativa craniana utilizando VMAT em um estágio fora do país (Holanda). Nessa mesma época, o físico da equipe e coautor do artigo, Wellington Furtado Pimenta Neves-Junior, teve a mesma experiência em outra instituição estrangeira. Voltamos entusiasmados dos nossos estágios, e logo a seguir tratamos nosso primeiro caso com o VMAT, um paciente meu com oito metástases cerebrais. Este tratou todas as lesões de uma vez, em dezoito minutos, com sucesso. Desde então, criamos um protocolo institucional para tratarmos com VMAT alguns pacientes acometidos por metástases cerebrais.
Nossa publicação inclui trinta e dois pacientes, mas agora estamos agrupando dados da nossa unidade de Brasília, chegando a uma soma de quase cem casos. Neste recém-publicado artigo de revisão, tratamos dos aspectos físicos, técnicos, dosimétricos, e, no final, o leitor aprende ainda a parte clínica — incluindo adicionalmente a nossa experiência com o uso do VMAT aqui no Hospital Sírio Libanês de São Paulo.
Optamos pelo VMAT por ser uma técnica que dá qualidade de vida ao paciente. Exemplifico: Eu vi um paciente em Pittsburgh, onde eu fiquei por um tempo no ano passado, recebendo tratamento para uma metástase cerebral com o aparelho CyberKnife. O paciente, que ficou uma hora e vinte minutos recebendo o tratamento, pediu para sair da sala duas vezes. Para realizar o procedimento, o paciente fica deitado e imóvel sobre uma mesa dura sem colchão — é incômodo. Portanto, realizar em uma hora e vinte minutos versus vinte minutos, é muito diferente. E isso é impactante para um paciente que tem câncer com metástase cerebral.
Oncologia Brasil: Como a radiocirurgia se enquadra no cenário de possibilidades terapêuticas para pacientes com câncer cerebral?
Dr. Hanna: Hoje temos feito radioterapia ablativa para tratar um número cada vez maior de lesões. E por que isso? Quais são os tratamentos oncológicos que têm efeito dentro do sistema nervoso? Quimioterapia basicamente não tem efeito, porque a maioria das drogas não passa homogeneamente pela barreira hematoencefálica. Terapia-alvo e imunoterapia são dois tipos de tratamento que passam por essa barreira, mas em termos relativos. Ainda não temos nenhum estudo bem estruturado que diga que você pode tratar um paciente com metástase cerebral somente com terapia-alvo ou com imunoterapia sem que se use alguma forma de tratamento local como radiocirurgia ou neurocirurgia.
Falando então em radioterapia, qual é o tipo de que dispomos? Ou usamos a radiocirurgia ou a radioterapia do crânio inteiro, do inglês Whole Brain Irradiation. Nessa técnica, basicamente se faz o tratamento de todo o crânio, tendo certa efetividade. Porém, essa irradiação apresenta potencial muito grande de toxicidade tardia, do ponto de vista neurocognitivo, podendo levar a sérias sequelas.
Desta forma, tanto o paciente quanto o oncologista preferem evitar a radioterapia de crânio inteiro, ou pelo menos postergá-la. Sempre que possível, opta-se pela radiocirurgia ou neurocirurgia, visto que as chances dessas sequelas cognitivas são muito menores e consequentemente o paciente ganha em qualidade de vida. Entretanto, quando tumor está numa área que o neurocirurgião não consegue operar, a neurocirurgia não é possível. Então seguimos com a radiocirurgia, e o paciente tem a mesma sobrevida, ou às vezes vive até por mais tempo.
Alguns trabalhos mostram que para pacientes com até quatro metástases, o tratamento locorregional oferece uma sobrevida maior. Eu tenho pacientes convivendo há sete, oito anos desde o tratamento com uma metástase cerebral, vivos e com a doença controlada. Essa revisão nos permite ter a conclusão de que é muito seguro fazer a radioterapia ablativa com a técnica VMAT.
Oncologia Brasil: E como é o cenário de possibilidades de diferentes métodos de radiocirurgia avaliado no seu artigo de revisão? Essa segurança difere entre as técnicas?
Dr. Hanna: Quando se comparam várias técnicas de radiocirurgia, por exemplo Gamma Knife, Cyber Knife, radioterapia 3D com arco, também chamada de DCAT — Dynamic Conformal Arc Therapy… Temos de levar em conta que os equipamentos têm algo em comum, que é como se fosse um canhão apontado para a lesão, e na realidade eles vão acertar essa lesão e uma pequena margem de tecido sadio que está em volta.
Quando a gente faz os planejamentos de tratamento, buscamos minimizar a dose nos tecidos sadios tanto quanto for possível. Porque, nos pontos em que estes tecidos receberem doses de radiação comparáveis às administradas para o tumor, eles também irão necrosar. Todas essas técnicas, em geral, têm essa capacidade de prover uma queda de dose, chamado também fall-off, em tecidos sadios.
Existem muitas outras revisões como a que nós fizemos. Mas a questão do tempo de tratamento é algo que não foi estudado por nenhum outro artigo previamente. Nenhum utilizou o tempo de tratamento como uma variável na comparação de técnicas diferentes de radioterapia ablativa, e esse é justamente um fator que nos deixa muito entusiasmados com o VMAT. Na nossa revisão, deixamos claro que o tempo é uma variável importante que tem de ser levada em conta, pois representa qualidade de vida para o paciente, conforto e acolhimento.
Oncologia Brasil: Até o momento, falamos muito de metástases cerebrais. Como funcionam as opções terapêuticas para outros tipos de lesão no cérebro?
Dr. Hanna: Quando a gente olha as estatísticas hoje, a metástase cerebral é o tipo de tumor mais frequente no cérebro. Mas não podemos deixar de comentar a existência dos tumores primários cerebrais, para os quais existe também um corpo de evidências médicas muito robusto para a radioterapia como tratamento. E não só a radioterapia, as técnicas cirúrgicas também melhoraram muito nos últimos vinte, trinta anos.
Hoje em dia se pode, para algumas regiões do cérebro, chamadas de áreas eloquentes, fazer a cirurgia com o paciente acordado. Você anestesia o paciente para chegar até o tumor e, depois de alcançado, você o acorda. O neurocirurgião opera o paciente enquanto o neurofisiologista faz alguns testes. Por exemplo, se o tumor está numa área que comanda a fala, ele fica fazendo perguntas ao paciente durante a cirurgia. Quando chega a um ponto de um possível problema ou sequela, a cirurgia para. Aí depois o paciente passa por uma radioterapia que vai buscar focar o tratamento na região da lesão, sem afetar os tecidos sadios.
A VMAT pode ser aplicada, de certa forma, no contexto do tratamento de tumores primários cerebrais, os chamados gliomas. Os gliomas são os tumores primários mais frequentes do cérebro. Além disso, o tratamento sistêmico, como a quimioterapia, também melhorou muito. Existem hoje linhas de tratamento que envolvem terapia-alvo e imunoterapia que vêm ganhando corpo no contexto do tratamento, além de outras técnicas.
Estamos lutando para implementar no Brasil uma técnica de campos elétricos alternados, chamada em inglês de TTF – Tumor Treating Fields. O TTF consiste na colocação de alguns eletrodos na cabeça que descarregam pequenos pulsos de campos elétricos alternados. E estudos demonstraram que isso traz um benefício na taxa de divisão das células, com uma redução no crescimento de tumores. Essa técnica também faz com que o paciente viva por mais tempo. E tem muita coisa por vir.
A radiocirurgia foi descrita inicialmente para pacientes que não tinham câncer. E hoje em dia a gente vê a possibilidade de fazer a radiocirurgia em algumas situações não-oncológicas, o que é muito interessante. Por exemplo, pacientes que têm um quadro de dor chamado neuralgia do nervo trigêmeo podem ser tratados com radiocirurgia num determinado local no cérebro e a dor deles melhora. Existem indicações de radiocirurgia para transtorno obsessivo compulsivo e doença de Parkinson.
Há, portanto, uma gama muito grande de indicações da radioterapia ablativa.
Oncologia Brasil: Qual você diria que é a contribuição principal do trabalho de vocês para o campo da radio-oncologia?
Dr. Hanna: Eu gostaria de reforçar a mensagem central do trabalho: na medicina, nós sempre buscamos fazer tratamentos que primeiro não machuquem o paciente, segundo um preceito clássico contemplado na expressão em latim Primum non nocere (“primeiro, não faça mal”). Então, eu acho que essa estratégia de terapia nada mais é do que isso, nós estamos tentando agredir menos os pacientes, tratá-los com mais conforto, propiciar um tratamento seguro e com qualidade de vida. Particularmente com o VMAT, pela questão de aliar segurança ao tempo de tratamento.
E é óbvio que, do lado de cá, nós profissionais temos de nos capacitar para isso. Então quando fazemos uma especialização fora do país ganhamos experiência, publicamos um artigo, e esse é o caminho para um resultado que vemos no brilho do olhar do paciente. O brilho no olhar de alguém que faz uma radiocirurgia e, depois de quinze a vinte minutos, quando sai do aparelho, escuta da equipe médica: “Olha, conseguimos tratar suas oito lesões com sucesso, e esperamos que você nunca mais precise da gente no futuro.” O paciente se sente feliz, e é esse o tipo de coisa que me faz chegar em casa muito feliz também.
Eu fico muito satisfeito, e é isso que me move a gostar do meu trabalho.
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